Ou, uma estrela está a caminho
Essa história não tem nomes. Tem uma cidade: São Paulo. E tem um esporte: futebol. Ela começa com um garoto pobre, morador numa favela, mas bom de bola. Nasceu com a habilidade dos craques, desenvolveu-a jogando com bolas de plástico nas vielas apertadas pelos barracos. Progrediu, passou a jogar na rua, e um dia jogou com bola de couro, de verdade, já velha, desgastada, mas, e daí? Quem se importa com um detalhe assim? Não ele.
Um pouco mais velho, um pouco mais encorpado, passou a jogar no campinho de terra ao lado da favela. Campo pequeno, bom pra moleques como ele. Em poucos anos era conhecido como um garoto bom de bola. Craque. Pouco estudava, a escola era ruim, sem atrativo, a disciplina inexistente, talvez, se houvesse um pouco, quem sabe? A muito custo desenvolveu a escrita, horrível, pesada, dura, mas, afinal, para que isso? Só se escreve em máquina e em computador! Foi fazer um teste num clube grande, famoso. Teste não, foi participar numa daquelas “peneiras”, um monte de jogadores cheios de esperança, sonhos, vontades, habilidades, amontoados ao lado dum campo mambembe, grama falha, feio, mas que naquele momento era um Morumbi em final de Libertadores, final de Campeonato Paulista, grama bonita, as linhas riscadas com cal, traves, redes... Parecia que estava sonhando.
Passou no teste.
Ganhou uniforme e chuteiras. Passou por um exame médico e até por um dentista. Teve sorte, só precisou tratar de duas cáries. Seu negócio era jogar bola. não melhorou na escola, mas pelo menos não piorou.
Quando o sonho de jogar num time grande tornou-se realidade, já não tinha mãe. Pai nunca teve, nunca viu, nunca soube quem era. Tampouco fez falta. Tinha os homens da família da mãe, tanto que um deles levou-o para fazer o teste. Sua irmã mais velha, “de maior”, com seus 19 anos, era a responsável por ele e pela irmã caçula.
De vez em quando ele sentia que estava num dia bom. Entrava em campo e arrasava. Como quando ganharam por 11x0. Onze a zero, e ele fez 7 gols. Sete. Conta de mentiroso, diziam isso e davam risada. Menos ele. Não era mentiroso e não conseguia aceitar a brincadeira dos amigos e colegas.
"Sete gols"...
Conversando com um e outro no clube, um empresário descobriu o óbvio de tantos meninos: estava meio abandonado, meio esquecido lá dentro mesmo. E ninguém no clube tinha conversado com a família do garoto, portanto, nada de contratinho, nada de procuração. No dia seguinte, quando o treino terminou, o guri ganhou uma carona pra casa, no carrão do empresário. Sentiu-se importante, grande e bonito sentado ali, na frente, do lado do cara. Gente boa, ele, simpático.
A conversa com o garoto fluiu com facilidade, entre elogios e informações. Em cinco minutos ou menos o motorista do carrão já conhecia tudo sobre a ainda curta e pobre vida do “sete gols”. Com a irmã dele e o tio ao lado a coisa foi mais difícil, mas nada sério.
Falou sobre as verdades do futebol. O guri tinha futuro, sim. E como ele mais um monte. E desse monte, de cada cem, duzentos, quinhentos garotos bons de bola, saíam apenas 2, 3, 4, 5 com muita sorte. Mas com ele trabalhando pelo “7 gols” a coisa não seria tão difícil. As chances seriam maiores. Ele próprio brigaria com os técnicos pra escalar o menino. Falaria dele para uns jornalistas amigos. E gravaria alguns jogos dele, isso era importante.
O tio concordou e falou que isso era importante mesmo. Nesse momento o empresário sentiu que estava tudo certo. A família já era dele. Conversa vai, conversa vem, a procuração foi assinada, registrada em cartório e tudo o mais no rigor da lei. Agora, a carreira do “7 gols” estava associada, não, mais que isso, estava entregue ao empresário. Em troca, uma boa parte do que o menino ganhasse seria dele. Mas todo mundo achou certo, apesar de acharem muito. Mas, nesse mundo as coisas são assim mesmo e quem pode mais chora menos. O futuro deles todos estava nos pés do moleque.
A conversa prosseguiu. O empresário fez um raio-x da vida do moleque. E passou recomendações, um monte. Nem recomendações eram, eram ordens mesmo, mas todas certas. Eles não podiam deixar o menino se envolver com gente drogada, nem ir pra muita festa, nem voltar tarde pra casa. Isso, de jeito nenhum. E o tio recebeu a missão de cuidar para que as noites do “7 gols” fossem sadias.
No dia seguinte, porque naquele não dava mais, a irmã, o tio e o menino foram com o empresário numa grande loja de materiais de construção. Os trinta mil reais que o empresário adiantou como um agrado, foram quase todos embora. E no dia seguinte começaram a construir uma casinha num terreno da família, coisa que parecia sem futuro, mas era o único legado da mãe falecida. Fora da favela, mas pertinho dela, ninguém iria ficar sem os amigos e amigas.
Tudo isso aconteceu há algum tempo.
O time grande tomou um susto quando um diretor foi conversar com a irmã do menino e teve que conversar com o empresário, não para assinar e sim para negociar um contrato “com” o garoto. A irmã nada mais assina. A conversa foi amigável, o diretor do clube sabia que eles mesmos tinham pisado na bola. O jeito, agora, era diminuir o prejuízo.
Parece que o primeiro contrato do garoto já rendeu cem mil reais. O empresário, acreditem, não quis recuperar os trinta mil adiantados. Disse que foi um presente. Pegou sua parte, como pega todo mês no salário do “7 gols” e orientou a irmã e o tio a aumentarem a casinha. E já falou que no ano que vem eles vão comprar um sobrado num bairro ali do lado. E já adiantou que não vai demorar muito eles vão morar na Europa.
O “7 gols” continua indo à escola. O empresário é chato, falou que tem um nome a zelar e quer o garoto bem formado, pelo menos no básico.
Fim. Ou isso é só o começo?
(Partes dessa história são verídicas. Os valores são reais e são em reais, por enquanto. Como disse o empresário, logo serão em dólares. Algumas partes foram, digamos, romanceadas. No fim, ficou tudo misturado. Mas sabemos todos que a ficção só imita a realidade, não é mesmo?)
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