Um Olhar Crônico Esportivo

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quinta-feira, novembro 03, 2005

Eu existo

Esta é a crônica de Nando Reis, publicada hoje no Caderno de Esportes do Estadão.

Eu existo

Nando Reis nandoreis@estadao.com.br

Dizem que todo o homem, para se realizar, deveria construir uma casa, escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Não sei se nessa ordem. Discordo. Afirmo que para se realizar todo homem precisaria fazer ao menos um gol na vida. Disso tive certeza segunda-feira.

Explico.

Todo ano a Fundação Gol de Letra – projeto de integração social capitaneado pelos ex-jogadores Raí e Leonardo – promove um torneio de futebol entre empresas, cujo objetivo é arrecadar o dinheiro das inscrições para aumentar a receita. O torneio premia a empresa vencedora e uma seleção dos melhores jogadores dos times restantes com a disputa de dois jogos contra times de jogadores, ex-jogadores, atletas e artistas. O jogo se dá no Estádio do Morumbi.

Há dois anos sou convidado para participar desse magnífico evento. Ano passado tive o prazer de jogar pela primeira vez num estádio oficial, cujo campo tem dimensões extraordinárias. Cheguei a relatar aqui, num dos primeiros artigos que escrevi para essa coluna, minha forte impressão do ocorrido. Falava, principalmente, da chuteira preta do goleiro Rogério e as marcas esculpidas através do uso.

Nesse ano, fui escalado para o segundo jogo. Assim que cheguei ao vestiário fui revendo e conhecendo alguns de meus ídolos. Raí, Zetti, Silas, César Sampaio, Mauro Silva... Vários atletas são-paulinos também lá estavam: Rogério, Lugano, Josué, Cicinho. Alviverdes: Sérgio, Juninho, Marcinho e Pedrinho (pude, finalmente, apertar sua mão e revelar minha admiração por sua trajetória tão difícil quanto vitoriosa). E uma lenda viva: Paulo César Caju. Depois da preleção de Raí uma cena emocionante. Todo os presentes homenagearam com uma salva de palmas o fantástico jogador da Copa de 70.

Mais uma vez, por uma incrível falta de cuidado, compareci ao evento desprovido de chuteira. Dessa vez fui gentilmente assistido pelo zagueiro uruguaio Lugano, que me advertiu que suas chuteiras jogavam com muita garra e firmeza. E que era preciso fazer jus à sua vocação inata.

Aquele ritual, que para os outros presentes parecia banal, para mim teve um caráter transcendental. Botar o uniforme no vestiário, andar pelo túnel, subir as escadarias que dão acesso ao campo e, mais do que tudo, correr pelo gramado infinito.
Debaixo de um sereno frio, entrei para o meu momento “Essa é sua vida’’ com a incrível missão de jogar na lateral esquerda! Quando Raí me escalou para a posição protestei, e ele prontamente respondeu: “Sorín, pensa Sorín. Joga livre pelo campo todo!’’ “Então tá’’. Pensei no fantástico argentino e fui fazer a minha clonagem.
Bola rolando e começo a correr pela linha extrema do gramado. Caramba, como é imenso! Mesmo com minhas lentes de contato que corrigem meus 10 graus de miopia, o astigmatismo residual dificultava a minha visão completa do campo. Mas a bola generosamente chegava a meus pés. E num lance de inacreditável precisão, armamos um ataque pela esquerda.

Numa triangulação entre Rogério, Juninho e esse aspirante a lateral, a bola me é devolvida já dentro da pequena área. O goleiro sai e eu coloco sutilmente, com o meu pé esquerdo, a redonda no fundo das redes.

Gol! Gol? Gol, não. GOOOOOOOOOOOOOOOL!! Parecia um milagre, uma espécie de visão santa. Fiz um gol no Morumbi! Corri para comemorar em direção aos outros jogadores incrédulos. Naquele momento a arquibancada se encheu, os vendedores de amendoim pararam para olhar, os rojões espoucaram, o céu se abriu e eu pude ver o Senhor! Tudo aquilo que eu havia colecionado em minha memória nos meus parcos 42 anos sumiu e eu renasci no tempo mágico do futebol. Por um instante, tive a sensação de estar eternizado. Não resisti e, intimamente, chorei. O futebol fez de mim um novo homem. Senhoras e senhores, eu existo!

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