Um Olhar Crônico Esportivo

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quarta-feira, abril 05, 2006

OBRIGADO, MESTRE

Coluna do Dr. Sócrates, na revista Carta Capital


Cheguei ao hotel apreensivo, pois seria a primeira vez que nos encontraríamos. Não sei exatamente por que, mas sempre me sinto um pouco desconfortável quando devo enfrentar situações desconhecidas, seja por culpa do ambiente ou das pessoas. Felizmente, a maior parte dos outros companheiros eu já conhecia bem. Entrando no hall, percebo algumas pessoas sentadas à minha direita. Dirijo-me até ali para cumprimentá-las. Ele era um deles. Percebi que se vestia com simplicidade e estava sentado confortável e discretamente. Quando me viu, abriu um largo e tímido sorriso e fez questão de levantar-se para se aproximar. Demo-nos as mãos. Seu olhar era profundo e incisivo e despertava absoluta confiança. Sua pele áspera e rude estampava a sua trajetória de vida. Apesar de sua pequena estatura, passava uma impressão forte e segura. Não pude deixar de compará-lo a meu pai. Soube a partir daquele instante que nos daríamos muito bem. Indivíduos que possuem entre suas virtudes a sensatez e a sinceridade facilitam os relacionamentos, mesmo que em posições hierárquicas diferentes. As relações, nesse caso, sempre são transparentes e honestas.

Horas antes da primeira partida sob seu comando, durante a sua última comunicação com o grupo de jogadores, fiquei sabendo que não começaria o jogo. Era a primeira vez que estaria na reserva em um jogo da Seleção. Fiquei um pouco decepcionado, mas não me alterei. De vez em quando ele me dirigia o olhar, parecendo avaliar as minhas reações. Seu discurso era claro e direto. Segurança plena. Explanava com naturalidade todos os seus planos. Atentamente eu procurava entender, já naquele momento, a sua personalidade e seus conceitos . Ao fim da preleção, mesmo sendo desnecessário, ele me puxou para um canto para explicar a sua opção. Ouvi-o com atenção e carinho. Sabia que estava procurando me conhecer e o tempo nos daria todas as oportunidades de aprofundar nosso contato.

Alguns meses mais tarde, outra surpresa. Esta, muito mais agradável: eu seria o capitão da equipe. Mas também sabia que aquilo era uma tremenda responsabilidade que ele punha sobre meus ombros. Chegar à Seleção Brasileira sempre é um sonho e foi o que me fez retardar a carreira médica, mas jamais havia imaginado que um dia assumiria algo tão portentoso. Carregar aquela tarja verde-amarela no braço esquerdo era um peso e uma honra que eu deveria rapidamente entender o que representava. Porém, mesmo assustado com a novidade, sentia-me orgulhoso e confiante. O que mais intrigava era por que ele havia me escolhido se no primeiro jogo nem mesmo fui titular. Que tipo de lógica ele tinha utilizado para determinar essa nova ordem? Até hoje não tenho convicção das suas razões, mesmo que tenha suposições que eventualmente possam esclarecer essas dúvidas. Só ele pode responder a essas questões. Eu só sabia que, a partir dali, teria mais do que nunca de fazer de tudo para corresponder à sua confiança.

Quando da dramática derrota para a Itália na Copa de 82, a primeira pessoa que vi depois do término da partida foi ele. Sua face era a própria expressão da dor que todos nós sentimos, mas ele tentava desesperadamente nos consolar. Esperou-nos à beira do campo e a cada um demonstrava o seu carinho. No vestiário, o sofrimento era imenso. Uns choravam copiosamente enquanto outros sofriam interiormente. Ele olhava para o infinit o e parecia tranqüilo, apesar do golpe. Sentia-se confortado por nosso esforço, acredito. Nem por isso deixava de sofrer. Queria muito abraçá-lo, protegê-lo, mas não tive forças. Mais uma vez ele me transportou a meu pai. Julguei que a dor que os dois estavam sentindo era da mesma intensidade. Chorei por eles muito mais que por outra coisa, mas as lágrimas escorriam com dificuldade. Estava destruído e impotente diante do acontecido. Só vim saber exatamente o que representava aquele sentimento muito tempo depois, quando meu velho partiu. Queria ser um santo para trazê-lo de volta, assim como para resgatar aquele título mundial a quem mais o merecia.Hoje, momento em que Telê Santana joga a grande batalha de sua vida (o ex-técnico está hospitalizado desde o sábado 25, com infecção generalizada), sinto-me no direito de agradecer a tudo o que dele pu de extrair para aumentar meus conhecimentos e a minha atitude. Certamente, levarei pelos anos restantes de minha existência exemplos de caráter, de hombridade, seriedade, responsabilidade e de personalidade que ele me proporcionou. Por tudo isso, obrigado, meu velho, e fique com Deus.

http://www.socrates.coc.com.br


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