Um Olhar Crônico Esportivo

Um espaço para textos e comentários sobre esportes.

<

sábado, fevereiro 24, 2007

Muito além da rivalidade


O ônibus seguia seu trajeto em meio às pirâmides egípcias, a caminho da Cidade dos Mortos. A bordo, turistas de vários países, a guia e o motorista, ambos egípcios. É nesse cenário que se desenrola esse trecho que transcrevo a seguir:


“O time adversário tinha feito um gol porque o motorista soltou o volante, deu-lhe um soco e mandou à merda alguém difícil de se determinar, depois se virou para os clientes e lhes explicou tintim por tintim todas as causas de sua irritação, até que se deu conta que não o entendiam. A guia teve de intervir, ainda assustada com a irritação do motorista, para informar que o juiz tinha validado um gol ilegal e que os dois times estavam jogando a Supercopa. Já em voz mais baixa a moça explicou que se desconfiava do time que estava ganhando porque tinha entre seus torcedores muitos ministros e presidentes de empresas, inclusive o próprio Mubarak havia expressado em mais de uma ocasião entusiasmo por seu estilo de jogo.

“Aqui como em todos os lugares, chefes.”

“O que quer dizer?”

“Bem, sempre tem um time oficial, governamental, que se beneficia dessa situação. Igual na Espanha.”

Biscuter não ironizava, mas referendava uma convicção que nem precisava expressar, pois uma das conserta-disléxicos de Tarragona também afirmava com a cabeça e tomava dos lábios de Biscuter o “igual na Espanha”, convencida de que não precisava dizer mais nada, e sua amiga chegou a Nietzsche para aprovar o que ali se debatia.

“Há povos que nascem para fazer história, e outros para sofrê-la.”

As duas lingüistas se sentiam identificadas com Biscuter e não foi preciso mencionar o inominável, pois os três eram milintantes do movimento anti-Madrid, até mesmo naquele território tão fugaz como um ônibus de turismo egípcio fabricado na Checoslováquia muito antes, não da queda do Muro de Berlim, mas de sua construção. As três almas levitavam sobre os imaginários campos de batalhas perdidas e reafirmavam a si mesmas, estivessem onde estivessem. “Seria impossível a condição de estrangeiro” , Carvalho formulou e em seguida perguntou: “É possível a condição de estrangeiro?”. A interpretação positiva da condição de estrangeira era a cidadania universal, mas cinqüenta anos depois de ter sido moda vangloriar-se dessa cidadania, o que dela restava era uma matéria espiritual envelhecida, assim como nos anos quarenta se dançava o boogie-woogie, a tal ponto que alguém chegou a escrever um chamado Um boogie-woogie a mais, tanto faz. Seus companheiros de confidência lutavam contra a condição de estrangeiros sentindo-se membros do Barcelona Futebol Clube, em confronto mortal com o Real Madrid, o que lhes permitia integrarem-se à cruzada antiglobalizadora sem se sentirem perdidos num desvão do nada. Mas era o mesmo processo utilizado para encarar a religião como consolo instrumental diante da evidência do embuste biológico. Ser do Barcelona Futebol Clube contra o Real Madrid lhes havia evitado, não a lucidez suprema, mas sua conseqüência: a solidão mais lúcida e, portanto, mais absoluta.”

In “Milênio”, págs. 71 e 72, de Manuel Vázquez Montalbán, Cia. Das Letras.

Montalbán faleceu em 2003 e esse é seu último livro com o detetive catalão Pepe Carvalho, amante de uma Barcelona em constante transformação e da culinária, não só catalã, mas de qualquer parte do mundo, desde que memorável.

Minha intenção ao transcrever esse pequeno trecho foi acentuar que rivalidades futebolísticas vão muito além das camisas dos times em muitos e muitos casos. E, geralmente, elas escapam à nossa compreensão. Comecei a ter noção dessas coisas há muito tempo atrás, ainda nos tempos da Guerra do Vietnã, quando descobri, espantado, que havia uma forte inimizade entre vietnamitas e chineses, ancorada por mais de cinco mil anos de história. Ora, isso é tanto tempo que é capaz de nem mesmo os índios terem chegado aqui nessa Terra de Vera Cruz. (Apenas frase de efeito, por favor. Hoje dá-se como certo que o povoamento das Américas e em particular da América do Sul é muito mais antigo do que se pensava. Descobertas da Dra. Niéde Guilon, em Sete Cidades, no Piauí vêm tendo suas idades confirmadas e colocam a chegada de nossos ancestrais por aqui mais ou menos por essa época.)


Identidade

Ser barcelonista vai além de simplesmente torcer para que o Barça faça mais gols que o adversário.

Acredito que não haja contrapartida semelhante por parte dos madridistas, e sim algo mais diluído, talvez.

Torcer pelo Barca vai um pouco mais além do futebol.



E um pouco sobre história...

“Há povos que nascem para fazer história, e outros para sofrê-la.”

Brasileiro que sou, faria uma pequena mudança nessa frase:

“Há povos que nascem para fazer história, outros para sofrê-la e outros, simplesmente, para vê-la passar.”



.

Marcadores:

<

Sonhos & Delírios



O torcedor está sempre sonhando com seu time, mais forte e poderoso a cada sonho. Os sonhos, na maioria das vezes, têm cara e nome certos, e vão desde Ronaldinho e Kaká até o Zé das Lontras, dependendo do time para o qual se torce e da grandeza do imaginário do sonhador. É bom que seja assim, é saudável, mesmo porque ninguém vive sem sonhar, mesmo que seja acordado.

Creio que podemos dizer que o delírio é o sonho exacerbado, o sonho sonhado, o sonho elevado ao quadrado e cuja raiz já é, ela própria, um pouco demais, mesmo para um sonho. Se o sonho já é um sonho, imagine-se, então, o delírio.

Muitos torcedores, provavelmente a maioria, deliram ao invés de sonhar.

Dois bons exemplos apareceram nessa semana que termina hoje. O primeiro diz respeito a Alex, o meio-campista que o que tem de genial tem de ausente, ídolo maior do turco Fenerbahçe, mas a caminho de ser ex ou dar a volta por cima e tornar-se mais ídolo do que nunca. Sabe-se, pelo próprio jogador, que a Turquia já lhe deu o que tinha para dar, e que foi, basicamente, muito dinheiro. Com a aproximação do final do seu contrato as especulações começaram. E elas, por sua vez, incendiaram as cabeças torcedoras em diferentes capitais, em diferentes camisas. Cruzeirenses e palmeirenses saíram na frente nos sonhos e planos para ter Alex de volta a seus times, nos quais brilhou intensamente e associou seu nome a grandes conquistas.

O segundo exemplo é o zagueiro argentino Samuel, ex-Real Madrid e atualmente na reserva da Internazionale, de Milão. Dizem que outro Internacional, o de Porto Alegre, estaria interessado em sua contratação. Foi o que bastou para a torcida colorada sonhar, mais que isso, delirar com a “chegada” em grande estilo do zagueirão argentino. Que, diga-se de passagem, é muito ruim e violento ao extremo, tendo sido execrado por imprensa e torcida quando no Madrid.

O sonho Alex

O Fenerbahçe ofereceu a Alex 2 milhões de euros por ano, num contrato de três anos. O jogador achou pouco e pediu 3 milhões de euros por ano, no mesmo período. Ora, uma continha simples nos mostra que esses valores correspondem, grosso modo, a quinhentos mil reais por mês na oferta do clube turco, e a setecentos e cinqüenta mil reais por mês na contraproposta do jogador. Ou seja, 6 milhões de reais num caso e 9 milhões de reais no outro. Isso tudo para um só jogador... Desnecessário dizer que são valores absurdamente fora da realidade brasileira. Ou melhor, muito além de nossas possibilidades. Comenta-se que Zé Roberto, no Santos, ganha quinhentos mil por mês, valor desementido pelo jogador e pelo clube, que dizem ser de apenas trezentos mil reais seus ganhos mensais. Pode ser, mas, provavelmente, a verdade está num patamar acima desse. E como o Santos já paga alegados quinhentos mil para seu treinador, gastando a bagatela de novecentos mil reis por mês com toda a comissão técnica, são fortes os boatos e indícios de que o clube já enfrenta, ou enfrentará em breve, sérios problemas financeiros, que a venda de Robinho parecia ter resolvido para todo o sempre. Coisa que, bem sabemos, só existe nos contos de fadas. Aliás, o próprio Santos esteve no centro da boataria sobre a vinda de Alex, que usaria a camisa e receberia o salário de Zé Roberto a partir de julho, quando, tudo indica, ele voltará para a Europa para ganhar mais do que ganha aqui.

O delírio Samuel

A se acreditar nas palavras de seus dirigentes, e não há porque delas duvidar, o Internacional é um clube com sérios problemas financeiros a resolver, ainda, e que luta para conseguir um fluxo de caixa regular, que permita manter uma equipe competitiva sem grandes dramas. Nesse sentido, uma rígida política salarial é essencial, o que foi dito várias vezes pelo ex-presidente Fernando Carvalho e por seu vice de futebol, hoje presidente, Vitório Piffero. Essa postura condicionou a renovação de contratos a um teto salarial inferior ao praticado por times de São Paulo, mas em consonância com as receitas do clube. Um jogador como Samuel, transferido do Madrid para a Inter, tem um salário astronômico para nossa realidade e para a realidade colorada. Dificilmente um jogador como esse ganha menos de 150.000 euros por mês, valor equivalente a bem mais de quatrocentos mil euros mensais, ou 5 milhões de reais por ano. E, naturalmente, ele não viria jogar no Brasil para ganhar menos do que ganha atualmente. Basta ver a duríssima negociação envolvendo Boca, Riquelme e Villareal para viabilizar a vinda do jogador por empréstimo por apenas 6 meses, e considerando que Riquelme estava com muita vontade de voltar e nenhuma de ficar na Espanha. Mas, apesar disso, não queria perder dinheiro, o que é muito justo. Isso tudo, acredito, nada mais foi que um boato plantado para entusiasmar os torcedores e amenizar um pouco a má fase vivida pela equipe nesse começo de temporada. Além disso, o grande rival colorado, o Grêmio, trouxe um zagueiro argentino já meio rodado, mas, para o padrão brasileiro e sul-americano, ainda muito bom, o Schiavi.

E se os azuis fazem festa, os vermelhos não podem deixar por menos. Nem que seja no imaginário de cada torcedor.


Alex e Samuel continuarão jogando nos campos europeus.

.

Marcadores: