Regras & Respeito
As primeiras regras do futebol foram criadas e estabelecidas na Inglaterra, em 1863 e foram parte de um processo mais amplo de normatização da vida em sociedade, que ganhava complexidade a cada novo dia. A Revolução Industrial, iniciada na mesma Inglaterra, propiciava a expansão das cidades, colocando mais gente morando ao mesmo tempo em espaços menores. Inevitavelmente, como vemos até hoje, esse fato levava ao acirramento e explosão de tensões, que poderiam ser evitados ou minimizados com regras estabelecendo e delimitando direitos e deveres, normatizando o comportamento de pessoas e instituições.
Isso, na Inglaterra, terra da Magna Carta de 1215, não foi tão difícil. Já existia entre as pessoas um pressuposto básico para o bom funcionamento de códigos e regras: o respeito às instituições e a crença na justiça.
No começo, o árbitro de futebol era exatamente isso, uma pessoa de fora que era chamada a arbitrar em caso de dúvida. Em seus primeiros tempos, inclusive, o árbitro ficava fora do campo de jogo, observando tudo à distância. As dúvidas sobre lances eram resolvidas dentro do próprio campo, geralmente pela conversa entre os dois capitães.
Essa situação veio a mudar e o árbitro passou a correr dentro de campo, e mais, contando com o auxílio de dois assistentes, um em cada lateral, a partir da introdução da lei de ouro do futebol: o impedimento.
Cabe aqui um parêntesis: o nome dessa regra, na Inglaterra e no mundo do futebol, é offside, ou seja, fora de jogo. Entre nós, porém, como fruto de nossa mentalidade jurídico-bacharelesca, ao ser traduzida o foi para impedimento, desvirtuando por meio da semântica seu significado original: o jogador avançado, que não tem pelo menos dois defensores entre ele e o gol (eram três, no começo), está fora de jogo. O impedimento é uma regra única e tem sua origem numa visão mais cavalheiresca do esporte, pois seu objetivo era impedir que alguém, de forma sorrateira e traiçoeira, se aproveitasse dessa vantagem para marcar.
Para que o futebol exista como esporte, não só ele, mas todos os demais, há a necessidade básica e elementar de respeitar regras e regulamentos. E, naturalmente, respeitar a decisão do árbitro, do juiz. Isso vale, também, para toda e qualquer sociedade, todo e qualquer agrupamento não só de humanos, mas de todo e qualquer ser que viva em comunidade.
Mas...
Não poderia deixar de haver um mas, principalmente em se tratando de Brasil.
Temos uma tradição que vem ainda do Brasil Colônia que é a desconfiança das autoridades. Desconfiança justíssima e alicerçada na presença de juizes e administradores cujo único interesse era encher suas burras e voltar o mais rápido possível para a Metrópole. Além disso, as autoridades brasilianas sempre foram, digamos, muito propensas à venalidade. Não parece ter mudado nos dias de hoje, pelo contrário, até.
Os árbitros de futebol, investidos de uma autoridade única e absoluta, não poderiam escapar à nossa falta de confiança. Por princípio, desconfiamos de quase qualquer marcação. Por princípio, vaiamos S.Sa. logo ao entrar em campo. É uma vaia preventiva e marca, com muita clareza, o que pensamos a respeito daquelas pessoas e do trabalho que vão executar.
Nos últimos anos, a evolução tecnológica nos meios de captação e transmissão de imagens, transformou qualquer jogo de primeira divisão brasileira num verdadeiro show de câmeras. Os jogos mais importantes têm mais unidades de captação do que as finais de Champions League. Isso é muito bom, por um lado, mas é péssimo por outro. É bom para o espectador e péssimo para o árbitro e assistentes.
Hoje, julga-se o árbitro e seus assistentes, com o auxílio de doze, dezesseis e até mais câmeras, além dos recursos de edição, como o slow motion e o freezing. A tudo isso, junta-se, ainda, a computação gráfica, às vezes em tempo real, transformando nossas transmissões esportivas nas melhores do mundo no que diz respeito ao futebol.
Árbitro nenhum compete com todo esse aparato.
Não pode e não deve. É uma desumanidade e, atrevo-me a dizer, uma descaracterização do futebol tal como foi criado e implantado. E tal como veio a tornar-se o esporte mais popular do planeta em todos os continentes, exceção feita, por enquanto, à Oceania.
Não respeitamos o árbitro, logo, não respeitamos as regras.
Isso tem paralelo com nossa vida cotidiana, onde as pequenas infrações são praticadas rotineiramente, sem culpa e sem consciência por imensa maioria da população.
Saindo do dia-a-dia, encontramos instituições esfrangalhadas, desde as mais importantes até as mais simples. E seus dirigentes e até meros funcionários, não fogem à regra, não destoam do estilo geral disso tudo. Pelo contrário.
Voltando ao futebol, temos uma postura extremamente crítica e apriorística sobre a arbitragem. Com o apoio das imagens eletrônicas, elegemo-nos em fiscais, eventualmente carrascos, dos profissionais que apitam e bandeiram em nossos gramados.
E esses, por sua vez, marcam mais faltas do que verdadeiramente acontecem. Marcam mais impedimentos do que seria correto. A maioria não tem coragem de “em dúvida, pró-ataque”, e opta por marcar. E marcam qualquer coisa.
A conseqüência direta disso são as intermináveis discussões que ocupam páginas e telas. Chegou-se ao cúmulo, no Brasil, das emissoras de tv contratarem “comentaristas de arbitragem”, todos eles ex-árbitros.
Uma vez mais o mundo curva-se diante do Brasil. Pena que quando isso não é falso, é simplesmente grotesco pelo ridículo.
Comentaristas de arbitragem...
As discussões nos blogs de futebol vêm-se tornando piores a cada dia.
São monotemáticas com fortes laivos bairristas.
Uma coisa chata, em resumo.
E há motivos para tanta discussão e reclamação?
Simplesmente, não.
Talvez por nossa inação e impotência para mudarmos "tudo isso que está aí", voltemos uma parte de nossos esforços para criticar e sugerir mudanças na justiça visível e palpável de cada jogo. Ora pedimos cadeia para os "edilsons" que, aos nossos olhos, parecem multiplicar-se, ora pedimos olhares eletrônicos para que o juiz pare o jogo e consulte a telinha, esquecendo que, muitas vezes, os próprios e invasivos olhares eletrõnicos nada acrescentam e só mantêm a confusão. E por aí vamos, com propostas mais ou menos civilizadas, todas visando eliminar os erros no futebol, pretensão meramente utópica.
Talvez fossemos mais felizes ou bem sucedidos ou ambos, se canalizássemos tanto esforço contra instituições e pessoas que realmente determinam como vivemos, a qualidade de vida que temos, o tipo de futuro que nos espera.
No caso do futebol, menos cobrança, menos pressão e uma ação firme e uniforme da Comissão de Arbitragem seriam suficientes para melhorar em muito nossas arbitragens.
Ah, sim, e no máximo o mesmo número de câmeras da Champions League.
.
Marcadores: BR e Futebol Tupiniquim