Guerra e Futebol
Esse é um baita monte de areia, muito maior que a pequena capacidade de carga do meu caminhãozinho intelectual. Mas, uma certa falta de bom senso aliada a uma boa dose de orgulho e pretensão, levam-me a encostar a caçamba no monte e tentar carrega-lo, ao menos
E dêem um desconto para o escriba.
A guerra, tirando os mortos, feridos, aleijados e toda a miséria criada ao seu redor e em seu rastro, era uma grande arte nos tempos pré-modernos. Os tratados militares eram frutos de mentes brilhantes, que neles empregavam todo o conhecimento humano até então acumulado. Como arte, ela permitia a aparição de seus próprios gênios, como Alexandre, Aníbal, Julio César, Gengis Khan, Napoleão e outros. Líderes carismáticos todos eles, capazes de levar milhares de homens a lutarem e morrerem por suas idéias e vontades. Tinham, também, visão e conhecimento das forças e das fraquezas humanas, exploravam os terrenos em que estavam, enxergavam movimentos e alternativas, tinham muito mais que noções de organização e métodos. Acho que, realmente, merecem ser chamados de gênios.
Churchill, na primeira parte de sua autobiografia reclama acidamente do fim da guerra com glamour, a guerra cavalheiresca, segundo ele encerrada juntamente com o Século das Luzes. Nessas guerras, o homem era o elemento principal sempre, ou quase sempre, pois em muitos casos os personagens-chave foram os cavalos e até os elefantes, levados por Aníbal para enfrentar e aterrorizar as tropas romanas. Para Churchill, a carnificina da I Grande Guerra foi o sinal dos novos tempos. Mas essa guerra marcou, também, a transição dos velhos para os novos tempos. Ao lado da matança anônima e em massa, característica dos tempos modernos e mais civilizados e letais, ela teve movimentos e ações pensados e executados à antiga. A França, por exemplo, baseou sua participação na guerra num conceito errado, ao passo que o avanço alemão, fulminante, tal como se daria 25 mais tarde, foi baseado em outra concepção, em outra escola. Os dois casos, porém, ainda permitem que se brinque de táticas num tabuleiro, com soldadinhos de chumbo, fortes e canhões colocados estrategicamente. Um pouco como a gente vê hoje nas pranchetas e quadros-negros dos professores, como são chamados os treinadores de futebol.
“O medo de perder tira a vontade de ganhar.”
Esse aforismo é muito usado por Vanderlei Luxemburgo, sem dúvida um dos melhores treinadores brasileiros, se não o melhor.
“A vontade de conquistar é a primeira condição para a vitória.”
Esse era o aforismo predileto do General Ferdinand Foch, diretor da École Supérieure de
Acredito que o aforismo usado hoje no futebol nada mais é que uma variação do que foi criado pelo General Foch. Posso estar enganado, não pesquisei a respeito, mas creio que é isso mesmo.
Tirando essa provável coincidência, no resto há mais divergências entre o pensamento do general e o do treinador brasileiro. Foch também empregava outros aforismos: “Victoire, c’est la volonté!” – ou “a vitória é força de vontade”. E também “a batalha ganha é aquela na qual não nos reconhecemos derrotados.”
Embora esse general francês desse uma certa atenção à defesa e aos suprimentos, o cerne de sua teoria era atacar, atacar, atacar sempre.
É famosa, por exemplo, sua resposta à pergunta que lhe foi feita após fragorosa derrota no Marne, onde seus oficiais viam-no gritando ao mesmo tempo que corria de um lado para o outro: “Ao ataque! Ao ataque!” E por que ele avançou quando estava tecnicamente derrotado?
“Por que? Não sei. Por causa dos meus homens, porque tive vontade. Além disso... Deus estava lá.”
Foch também dava muito espaço em sua teoria ao imprevisto, dizendo que era necessário pensar no curso da ação de acordo com as alternativas de terreno, materiais e táticas empregadas pelos adversários. Dizia: “Os regulamentos são ótimos para os exercícios de guerra, mas na hora do perigo eles são inúteis. (...) É preciso aprender a pensar.”
A escola alemã era o oposto, com sua doutrina baseada
Os alemães davam, também, grande valor ao treinamento e aos regulamentos, agindo sempre de acordo com eles. Pejorativamente, seguiam a cartilha.
Ao fim e ao cabo, a França perdeu e a Alemanha também perdeu. Embora a escola alemã estivesse mais correta que a francesa, sem a menor dúvida, não foi o bastante para vencer, tanto na Guerra de 14 como na de 39. Felizmente, digo aqui do meu cantinho.
E o futebol com tudo isso?
Ao ler no correr desses dias algumas obras sobre a Primeira Grande Guerra, tive minha atenção desviada pela lembrança dos professores, ops... dos treinadores falando sobre suas táticas e esquemas. E também, claro, do brilhante PVC abordando didaticamente o mesmo tema.
Ouvindo-os e lendo-os, fica claro que preconizam uma mistura de Foch com Clausewitz. Ao ataque, mas com cuidados defensivos e sólidas retaguardas materiais. Deslocamentos pelas pontas, como os alemães invadindo e ocupando a Bélgica para chegar a Paris, bloqueio de forças, penetrações em velocidade, viradas súbitas de jogo, tirando a bola do foco na direita e colocando-a na esquerda desguarnecida.
No decorrer desses mais de cem anos de futebol, tivemos diferentes táticas preconizadas como ideais. Teve o pioneiro WM, as variações do 4-2-4, 4-3-
As concepções de futebol são diferentes. Para a maioria dos torcedores vale a escola do General Foch: atacar, atacar, atacar sempre, dourando essa pílula com a sapiência de uma bela frase: o ataque é a melhor defesa. Num outro extremo temos o catenaccio, a criação da escola italiana de futebol, com sua sólida, quase intransponível formação defensiva, protegendo a meta dos ataques adversários.
Ao ouvir as entrevistas dos treinadores hoje, uma palavra sobressai: equilíbrio. Pode-se dizer que é a palavra da moda. Mas, ao contrário de outras que fizeram moda e ficaram famosas, equilíbrio tem tudo para permanecer atual e válida por muito, muito tempo. Em resumo, como diz o nome, busca-se formar um time que ocupe todos os espaços do campo, desloque-se com velocidade, marque com mais gente do que é atacado e procure atacar com o máximo de jogadores, sem ficar exposto atrás. Ao mesmo tempo, deve haver uma variação entre direita e esquerda, utilizando os dois lados indistintamente. Simples, não é? Um time bem equilibrado tem boas e suficientes peças de reposição, assim como uma boa retaguarda, compreendendo ambiente, centro de treinamento, departamento médico e de fisioterapia, etc.
Equilíbrio entre a "porralouquice" fochiana e a rigidez germânica, tendo espaço para o improviso e as mudanças de rota no meio do caminho, como também seguindo rigorosamente um programa de treinamento e obedecendo a um esquema tático pré-definido. Simples, como eu disse linhas atrás. Mas, pensando bem, tudo isso tem tudo a ver.
É o futebol como deve ser nos dias de hoje.
Em certas partidas, jogo já perdido, time desarrumado em campo, jogadores confusos e desanimados, derrotados, observo o treinador à beira do gramado gritando e gesticulando “Ao ataque! Ao ataque!”, e penso no General Foch. Felizmente, desses ataques tão insanos quanto inúteis, que abrem ainda mais a retaguarda e aumentam o fragor da derrota, nada resultará para os jogadores além de mais canseira e, quem sabe, vergonha. Ao contrário das mortes que talvez tenham pesado na consciência do General, embora eu ache que não pesaram.
Essa é a sutil diferença entre futebol e guerra.
.
Marcadores: Crônicas