Um Olhar Crônico Esportivo

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quarta-feira, abril 11, 2007

Ética e omelete


Pegue três ovos, ou dois, o que talvez seja melhor nesses tempos bicudos de odes à saúde perfeita, que nos levam a acreditar, inconscientemente, que comendo pelas tabelinhas mágicas que a imprensa publica seremos eternos. Eternos para sempre... Com direito a redundância, mas não a um quindim.

Corte o queijo ou a mussarela, pique a cebola e o tomate, se gostar e quiser um pouco de “saudabilidade”. Uma pitadinha de sal, caso o queijo ou a mussarela já não a tenham o suficiente. Acenda o fogo, coloque a frigideira, deixe-a ficar bem quente antes de colocar um pouco de azeite, mais saudável e tão gostoso quanto a manteiga. E com aquele sabor único que só o azeite de oliva proporciona.

Enquanto a frigideira esquenta, quebre um ovo, despeje clara e gema em pequena tigela, quebre outro ovo, repita o restante, agite bem com um garfo, se você for simples, ou com uma batedeira especial, se você for moderno e, mais que isso, um metrossexual. Diminua o fogo sobre o qual está a frigideira e despeje os ovos mexidos e já com a pitadinha de sal, se tiver sido necessária, na frigideira quente onde o azeite espalhou-se educadamente. Em seguida, coloque as fatias de queijo, passando-as antes pela tigela, onde vão rapar o que ficou de ovo mexido. Tampe a frigideira e aguarde um pouquinho, antes de destampá-la e dobrar a massa cheirosa e apetitosa.

Enquanto isso acontece no escurinho da frigideira, observe o cenário. Um belo e saboroso prato está em fase final de preparo. Em poucos minutos estará sendo saboreado, acompanhado por um vinho, um pedaço de pão e uma saladinha. Ao lado dessa promessa em andamento, temos um cenário de terra arrasada ou quase isso, dependendo da habilidade e cuidado no preparo que você, chef ocasional e espectador do Oliver, tem. Pia suja, tigela suja, facas idem, com as quais queijo, tomate e cebola foram cortados e picados. E, sobretudo, vítimas mudas de “tudo isso que está ali”, os ovos quebrados, ou melhor, suas cascas, despidas de seu conteúdo vivo.

Barriga cheia, satisfeito, recorde-se da omelete e transponha seus elementos e processo de produção para o atual momento no mundo das transferências de atletas de futebol. A analogia é simples e tem lá sua validade. Nela, os ovos quebrados representam o velho sistema escravocrata vigente durante a existência da famigerada “lei do passe”. A omelete prestes a sair da frigideira, ou da omeleteira, já que você tem um batedor especial e declarou-se metrossexual, como o Beckham, representa a nova realidade do jogador como funcionário, como se fosse um executivo qualquer de uma empresa qualquer. O mundo da bola, acostumado e saudoso da escravidão, chia, reclama, proclama aos quatro ventos que a ética está sendo pisoteada e que os contratos não estão sendo respeitados e que os piratas estão agindo despudoradamente, tirando jogadores daqui e dali pela atração do dinheiro, nesse caso, mais do que nunca, o legítimo vil metal. E bota vil nisso.

As acusações se multiplicam, assim como os pedidos de punição para os piratas. Muitos acusadores não olham para suas próprias realidades e, convenientemente, esquecem seus momentos “piratas”. Algumas colocações beiram, ou até ultrapassam o ridículo, particularmente as que pregam que um time interessado em um atleta deveria primeiro procurar e conversar com os chefes do atleta pelo qual tem interesse, antes mesmo de falar com esse atleta e seu procurador, agente ou empresário.

No mundo real, uma empresa faz um convite a um profissional para mudar de emprego sem ficar, previamente, consultando seus superiores. Teria até muita graça, diga-se de passagem:

“Olá, Fulano, como vai? Olhe, estou ligando porque estamos interessados em contratar o Beltrano, seu diretor de marketing. Tudo bem para você?”

Ao que o outro, estupefato, responde que isso é inadmissível, onde já se viu, nossas empresas são concorrentes, ele conhece nossos segredos, patati patatá e por aí vai. Sem chance, não é mesmo?

Com a libertação dos jogadores, digo, com o fim do passe, eles entraram no mundo real de todos nós. Há diferenças, claro. Para começo de conversa, a carreira de um jogador tem uma duração média de 8 a 10 anos como geradora de renda bastante para, no caso dos mais afortunados, propiciar a formação de alguma poupança. Com pouco mais de trinta anos, no auge da vida, da forma, da capacidade intelectual e produtiva, um jogador pára. Não pode mais jogar bola, sua profissão primeira, única e, geralmente, última. Então, essa janela entre os 20 e os 30 anos de idade, um pouco mais para os poucos muito bons, precisa ser aproveitada ao máximo, o que antes acabava sendo impossibilitado pela posse do passe por um clube.

Nessa nova realidade não tem mais lugar as velhas práticas de outrora. Não há porque o interessado falar primeiro com um clube antes de falar com o jogador e seu representante. Não tem lógica e a ética nada tem a ver com isso. É uma relação trabalhista simples.

Uma das especificidades do mundo da bola é a existência da multa contratual, muito justa, por sinal. Se o atleta quiser mudar antes de vencer seu vínculo contratual, paga uma multa rescisória e ponto final, vai cuidar da vida em outra freguesia.

Simples, limpo, higiênico, transparente.

Se o dinheiro da multa sai de seu bolso, do bolso do empresário ou do bolso para o time onde vai jogar, é irrelevante. Dinheiro não tem cara, cor, ideologia. Basta que seja obtido por vias legais.

E com isso tudo acontecendo, a ética escravagista fica perdida, sem rumo, sem lenço e sem documento.

Da mesma forma as cobranças tão pueris quanto eternas de torcedores pregando “amor à camisa”, “respeito ao clube” e outras expressões famosas e ao gosto das torcidas, as mesmas torcidas, com as mesmas pessoas, que ao primeiro erro irão crucificar o atleta e que, se no futuro estiver em dificuldades, irão ignorá-lo solenemente, afinal, o cara ganhou muito dinheiro, ele que se vire. Essa é a lógica do torcedor. É justo que o atleta tenha a sua contrapartida.

Tão ou mais cruel que a lógica da torcida, é a prática dos dirigentes e treinadores. Estão se lixando para o jogador, ignoram redondamente seus muitos anos de bons serviços, quando, por culpa de sua incompetência, geralmente, a situação aperta e a economia faz-se necessária. Aí, o primeiro que roda é o atleta mais velho, com mais tempo de casa e, geralmente, salário maior. Mandam-no embora sem mais essa nem aquela e contratam dois ou três jovens jogadores, a preço de banana no auge da safra.

É justo, também aqui, que o jogador tenha a sua contrapartida para isso.

A nova realidade é boa, é justa, é interessante, inclusive, para os clubes. Basta usar a cabeça e trabalhar de acordo. Mas, infelizmente, e não por acaso, a maioria dos dirigentes do futebol brasileiro preferem chorar e reclamar e clamar pela volta dos grilhões do passe. Nada aprenderam com 1888. E já tiveram tempo de sobra para isso. E pior que eles são os torcedores em sua maioria, que ignoram, para os outros, o fim da escravidão.

Nesse novo mundo, ético é dar boas condições de trabalho, cumprir o que foi prometido, pagar em dia. O resto é conversa fiada.


Jogue os restos no lixo e boa refeição. Saboreie a omelete, ela está ótima.


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2 Comments:

  • At 9:00 PM, Blogger Iara Alencar said…

    oi Emerson, eu achei interessante a dica deliciosa da omelte.
    Mas isso é muito gorduroso.
    Só discordo dessa tua analogia com a bola..

     
  • At 10:35 AM, Anonymous Anônimo said…

    Olá Emerson.

    O texto está perfeito. É isso mesmo! Concordo com tudo que você escreveu. Só mesmo os saudosistas incompetentes não perceberam a nova ordem. Bem, deixa para lá. Enquanto eles reclamam, clubes mais organizados dão as cartas no novo cenário futebolista. Um abraço. Miquéias

     

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