Os visitantes e as moitas de capim
Final dos anos sessenta, começo dos setenta, interior paulista.
Padre Nóbrega era um pequeno distrito de Marília (é ainda, porém não mais tão pequeno) e o que tinha de mais notável era o fato do trem “de luxo” da Cia. Paulista parar por pouco menos de um minuto em sua estação, para sempre guardada na memória.
Domingo era dia de jogo, de manhã ou de tarde. As coisas ficavam quentes quando vinha time de fora
Bons tempos...
Uma coisa era sagrada: respeitar o adversário. Ali, em nossa casa, éramos a totalidade, praticamente. Mesmo quando o adversário trazia torcida, eram seis ou oito gatos pingados, e vinham todos na carroceria dum Mercedão ou em duas ou três Kombis. Todo mundo se trocava por ali mesmo, na beira do campo, num local mais abrigado por moitas de capim, ao lado do cemitério. Quem conhece sabe que o colonião meio largado dá umas touceiras altas, e escondidos pelas moitas e pelo muro do cemitério, os visitantes trocavam de roupa, descansavam, conversavam, levavam bronca do treinador, tomavam água, “tiravam” água dos joelhos, essas coisas para as quais um pouco de intimidade e discrição são de bom alvitre.
Ah, é verdade, um dos limites do campo era o cemitério. O outro, como o leitor atento percebeu, eram os trilhos, e do outro lado deles, a “rua de baixo” da cidadezinha.
As outras duas divisas eram com uma ponta de cafezal e um pasto da Fazenda São Paulo, que durante alguns anos meu avô administrou.
Muitos jogos davam uma baita confusão dentro de campo, mas a coisa ficava por ali mesmo. Respeitar o juiz da Liga, um coitado dotado de boa-vontade enorme e uma coragem ainda maior, era fundamental, também. Acho que, primeiro, porque brigar com o pessoal de fora seria uma covardia, e isso tinha lá seu peso. O cara podia ser muita coisa, mas não podia ser covarde. Segundo, porque em caso de briga a Liga suspendia o time e, nesse caso, adeus futebol. Respeitávamos, também, o “vestiário” dos visitantes. Ninguém chegava perto daquelas moitas de capim, pois aquele lugar era dos adversários. Essa era uma coisa com a qual ninguém se metia a besta.
Ah, sim, não existia policiamento, claro, aliás, nem na cidadezinha existia força policial. Em caso de confusão tinha que telefonar pra Marilia, tarefa que demorava, com sorte, de dez a quinze minutos para a telefonista conseguir fazer. Mas não lembro de polícia de Marília aparecer por lá.
Quando nosso time ia jogar fora, principalmente em fazendas distantes quinze, vinte, trinta quilômetros em estradas de terra, íamos tranqüilos. Em nossas casas ninguém ficava preocupado. Era chegar, jogar, chupar laranja ou manga, comer mamão, coisas que o pessoal da fazenda sempre levava pra gente. O único e grande cuidado era ninguém se meter a besta com as meninas das fazendas. Limites existiam e era bom que fossem respeitados.
Cresci com esses pequenos e básicos valores.
Com o tempo, aprendi que o futebol tem ritos e tem mitos e ambos são importantes para que um jogo aconteça. Mesmo um time grande quer e precisa desses rituais.
Ao jogar fora, sempre tem diretores, além do elenco e comissão técnica. Há regras escritas e não escritas a respeito da recepção, acomodação e segurança da diretoria visitante. Gentilezas são trocadas, bem como votos mútuos de boa sorte.
Em terreno adversário, os jogadores ficam entregues à própria sorte, teoricamente à mercê grupos raivosos. Por isso, eles precisam de proteção. Essas regras, normas, oficiais ou não, escritas ou não, precisam ser e são cumpridas.
A existência do futebol e de suas competições baseia-se, em boa parte, nessas pequenas coisas.
Como o respeito às Kombis e às moitas de capim dos visitantes.
E às meninas das fazendas.
Pequeno adendo
Padre Nóbrega é vizinha de Oriente. Menos de dez quilômetros separam as duas pequenas grandes cidades. Oriente, tanto quanto Nóbrega, mora em meu coração e em minhas lembranças. Jogos, amigos, caçadas, bailes e as "brincadeiras dançantes", disputas, namoradas... Oriente é a terra do Marcos, o Marcão gente boa, o melhor goleiro do Brasil junto com Rogério Ceni. Parte de sua família faz parte de nossas lembranças de infância.
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Marcadores: Crônicas
11 Comments:
At 1:49 AM, Odair Porcolino said…
Emerson.
Belíssimo texto.
Você me fez voltar à infância, lá no Bairro dos Macacos, em Pederneiras-SP.
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Vim pra capital com quase dez anos, mas me lembro dos campos gramados, sempre bem conservados, onde meus irmãos mais velhos e até o meu falecido pai jogavam.
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Naquela época os jogadores de várzea usavam uma espécie de sunga por baixo do calção.
diziam que era pra proteger as partes ínimas.
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Percorríamos até 100 kms em cima de um "Mercedão" pra jogar em outras "frequesias".
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Muito Obrigado, meu velho.
Com esse lindo texto, você me fez voltar ao passado.
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Abraços verde-esperança.
Odair Porcolino.
At 8:55 AM, DERLY. said…
poesia pura seu texto,parabéns.
ronaldo derly
At 2:11 PM, Unknown said…
hu terror o valdivia é matador..
At 3:46 PM, Rubão said…
último post do Juca Kfouri:
Acredite se quiser
A direção do Palmeiras, depois de ouvir peritos da Polícia Técnica que estiveram no Palestra Itália pela manhã, está convencida de que o gás no vestiário do São Paulo não veio de fora, por impossível.
Ou seja, está convencida que só alguém dentro do vestiário poderia ter cometido a insanidade.
O que, é claro, aumenta a suspeita de que tenha sido feito por alguém da delegação tricolor.
Se for isso mesmo, e saberemos nas próximas horas ou nos próximos dias, repita-se é caso de eliminar o glorioso São Paulo FC do futebol.
Não só pelo crime, mas, principalmente, pela burrice.
ELIMINAÇÃO O SPFC DO FUTEBOL! TAÍ UMA COISA QUE QUERO VER. E AGORA, EMERSONG? FOI SEU “HERÓI” QUE ESCREVEU ISSO, NÃO EU.
At 4:15 PM, Anônimo said…
Nunca li tanta barbaridade sobre o ocorrido no PA...
essa do Juca então...
At 6:08 PM, Anônimo said…
Os botafoguenses bem que poderiam se apropriar deste texto a alguns anos apos jogar no Morun]mbi, o lindo texto cairia como uma luva naquele jogo.
Pau que da em Chico , as vezes da em Francisco.
At 7:08 PM, Emerson said…
A história é recheada de paus que bateram em chicos e franciscos.
Numa visão histórica, não há inocentes.
At 1:25 PM, Anônimo said…
Oi Emerson.
Você me conhece há bastante tempo e sabe que sempre emito minhas opiniões de acordo com o que penso.
Sabe também que admiro você e sua forma de debater qualquer assunto, e "acho" que sempre agi da mesma forma com você.
Sempre respeitei o São Paulo, e já me posicionei favorável a ele como já me posicionei favorável ao Flamengo, Botafogo, Vasco e outros times, dependendo do assunto e da minha convicção.
Queria deixar claro aqui, que em nenhum momento insinuei que a diretoria do São Paulo compactuaria de uma ação vegonhosa como a ocorrida.
Assim como não acredito que a diretoria do Palmeiras compactuasse.
Também não pus em dúvida a veracidade do ocorrido.
Apenas me posicionei sobre alguns comentários que claramente acusavam a "entidade" Palmeiras como autora do fato.
Acredito que um (ou uns) torcedor(integrante ou não da diretoria, da comissão técnica ou até mesmo do quadro funcional), seja de que clube for, seja o responsável pelo ato.
Mas sinceramente creio que foi um ato isolado.
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Na minha análise, também não emiti parecer algum sobre ser justa ou injusta a interdição do Palestra.
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Em relação ao Valdívia, acho que as palavras do Muricy publicadas hoje, traduzem o que falei.
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E sigo achando que jogadores profissionais devem estar preparados para provocações "verbais".
Abraço
At 8:25 PM, Anônimo said…
é no Kfuri né fraco não hein Emerson...
At 10:27 PM, Ailton Gomes said…
Grande Emerson, tú não imagina o quanto ficamos orgulhosos pela tua cronica no JK...Uma beleza...um reconhecimento não apenas a tua capacidade, as a tua cordialidade em todos esses anos.
Um abraço
Ailton Gomes
At 1:12 AM, Leonardo Rosa said…
Parabéns pelo texto.
Fui criado em Marília, ali no Jardim Santa Antonieta, direto ia de bicicleta para Pe. Nóbrega de bicicleta e vez ou outra parava nesse campo para ver alguns jogos.
Sem falar no trem, que meu avô ajudou a construir a linha e que por muitos anos viajei pelo estado paulista.
Boas lembranças, obrigado.
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